Opinião| Francisco Sottomayor “Turismo de pé descalço? Sim, obrigado”

Por a 24 de Agosto de 2017 as 10:33

É voz comum que o turismo de pé descalço não interessa. Que deixa poucas receitas e que é incompatível com o turismo de gente rica, que nos cai bem melhor. Ouvindo alguns, dir-se-ia que Portugal deveria ser todo ele um grande Vale do Lobo. Imaginem: de Caminha a Vila Real de Santo António, uma sucessão contínua de greens e fairways, aqui e ali pontuados pela proverbial moradia e a inevitável piscina.

Esta maneira de ver as coisas faz-me lembrar quando, há um bom par de anos, o Manuel João Vieira, músico, humorista e então candidato à Presidência da República, dizia que se fosse eleito mandava alcatifar Portugal. Sim, falamos do candidato que afirmava que só desistia se fosse eleito.

Felizmente também há quem veja as coisas de outra forma. Incluo-me neste grupo que acha que no turismo a diversidade da procura é um valor a preservar e a promover. Um pouco como na alimentação, em que a variedade é fundamental para minorar o efeito dos “venenos” que todos os dias comemos, também no turismo a diversidade da procura e das suas motivações é verdadeiramente salutar.

As vantagens desta diversidade são, como na nossa saúde, uma maior sustentabilidade, por três razões: diferentes motivações determinam uma maior dispersão geográfica, aliviando a pressão turística em algumas zonas e levando desenvolvimento e emprego a outras; implicam esforço mais racional, do ponto de vista financeiro, ambiental, etc.; e, finalmente, asseguram uma muito saudável diversificação de mercados, fundamental em qualquer investimento.

De facto, o que é importante é que cada destino encontre o seu mercado e o trabalhe de forma a ter um produto consistente que apele e preencha as necessidades de um determinado segmento de mercado, seja ele de pé mais ou menos calçado.

Veja-se o exemplo da Ericeira, um destino turístico que tem crescido essencialmente num segmento de mercado que pode muito bem ser considerado de pé descalço (até mesmo porque quase ninguém faz surf de sapatos).

Há dez anos, a Ericeira era um destino como tantos outros da nossa costa a norte de Lisboa, que funcionava exclusivamente nos meses de verão. O resultado era que a qualidade da oferta ao turista em termos de alojamento e restauração era de forma geral escassa, e muitas vezes de baixa qualidade, e os serviços de apoio (supermercados, farmácias, posto médico, etc.) rebentavam pelas costuras durante o pico de verão.

Acontece que a Ericeira encontrou a sua vocação, e foi atrás dela. Em 2011, esta outrora típica vila piscatória foi declarada Reserva Mundial de Surf, permanecendo até hoje como a única reserva mundial de surf na Europa. O desenvolvimento do turismo que se seguiu, todo ele centrado em volta do fenómeno do surf, tem sido verdadeiramente explosivo e o resultado está à vista: multiplicam-se os restaurantes e o pequeno e grande comércio (contam-se cinco novos supermercados), tendo-se verificado um salto qualitativo gigante.

Hoje, a Ericeira funciona praticamente todo o ano (contrariamente ao que a maioria julga, as ondas são mais consistentes no Inverno do que no Verão) e quem por lá passa arrisca-se a encontrar um surfista em cada esquina e a ouvir mais inglês de pronúncia australiana, sueco ou holandês do que português.

O facto é que, com a única exceção do famoso hotel da Ericeira, hoje detido pelo Grupo Vila Galé, a oferta de alojamento na Ericeira é exclusivamente constituída por várias dezenas de hostels e algum alojamento local (seja ele improvisado ou não). Ou seja, trata-se de um destino para os tais turistas de pé descalço, mas, no entanto, os resultados estão bem à vista.

Olhando para o fenómeno do surf onde ele começou há mais tempo, na Califórnia e na Austrália, por exemplo, verificamos que hoje este não é um desporto exclusivamente de jovens, e muito menos apenas para pés descalços. Não tenho dúvidas que a Ericeira vai continuar a fazer o seu caminho em termos de qualidade da oferta de alojamento e que é inevitável que apareçam outros produtos, provavelmente mais na linha da hotelaria tradicional.

*Por Francisco Sottomayor, Director do Departamento de Promoção e Reabilitação da CBRE Portugal

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