Como atender hóspedes com deficiência pela voz dos próprios
Ana Sofia Martins, Catarina Oliveira, Madalena Ribeiro, Mariana Sapatinha e Marisa Maganinho têm uma coisa em comum: adoram viajar. No entanto, nem todas as unidades de alojamento proporcionam acessos suficientes […]
Carla Nunes
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Ana Sofia Martins, Catarina Oliveira, Madalena Ribeiro, Mariana Sapatinha e Marisa Maganinho têm uma coisa em comum: adoram viajar. No entanto, nem todas as unidades de alojamento proporcionam acessos suficientes adaptados às suas deficiências, sejam elas motoras, auditivas, visuais ou intelectuais.
Com o objetivo de chamar a atenção para a questão das acessibilidades – neste caso de quem se desloca em cadeira de rodas – Ana Sofia Martins criou o blogue “JustGo – by Sofia”, onde partilha as suas aventuras pelo país e o mundo. As dificuldades com que se deparava em algumas viagens levaram-na a criar esta plataforma, com o intuito de chamar a atenção para a questão, “sempre pela positiva”, para que mais locais se tornem acessíveis.
Também Mariana Sapatinha, portadora de paralisia cerebral e utilizadora da cadeira de rodas, seguiu o exemplo e criou um canal de Youtube, o “Vai de Rodas”, após perceber que “não é fácil encontrar informações sobre os lugares para fazer turismo adaptado”. Já Catarina Oliveira utiliza o seu Instagram, Espécie Rara Sobre Rodas (@especierarasobrerodas), para desconstruir “com algum humor e leveza” as questões de capacitismo associadas à pessoa com deficiência, bem como as barreiras físicas que encontra nas suas deslocações.
Quando falamos em acessibilidade em hotelaria, neste caso referente a pessoas que se deslocam em cadeira de rodas, tanto Ana como Catarina e Mariana afirmam que a primeira questão se coloca logo na altura da reserva. É difícil perceber se o hotel é ou não acessível “porque essa informação não existe praticamente em lado nenhum”, seja no site do hotel ou nos motores de reserva, de acordo com Ana Sofia Martins.
Apesar de os motores de reserva disponibilizarem um filtro relativo a acessibilidades, todas as intervenientes explicam que este não dá qualquer garantia, uma vez que alguns hotéis afirmam ser acessíveis sem o serem, para além de existirem hotéis acessíveis que não fazem essa referência. Para Catarina Oliveira, a questão é fácil de contornar: “obrigar as instalações a colocar fotos da entrada sem obstáculos, ou com equipamentos facilitadores, das imediações do hotel, do quarto e da casa de banho adaptadas”.
Ainda no processo de reserva, Ana Sofia Martins e Catarina Oliveira apontam uma outra questão: o facto de só existirem entre um a dois quartos adaptados nas unidades hoteleiras, geralmente em hotéis de gama alta, já que “os hotéis mais baratos nem sempre estão acessíveis ou adaptados”, como explica Catarina Oliveira. De acordo com Ana Sofia Martins, também é recorrente reservar um quarto standard e ser contactada posteriormente com o aviso de que o quarto adaptado é de uma categoria superior, sendo por isso obrigada a pagar mais – apesar de já ter encontrado algumas unidades hoteleiras que não cobraram a diferença.
O número diminuto de quartos adaptados traz outra limitação: o facto de a lotação ser rapidamente atingida. Ana Sofia Martins explica que habitualmente tem “que reservar três, quatro quartos até conseguir um que esteja disponível e acessível”.
A solução passaria por adaptar mais quartos, ou existir “a possibilidade de estes serem adaptados na hora”, tal como aponta Ana Sofia Martins.
Catarina Oliveira acrescenta que essa adaptação “não ficaria assim tão cara, porque é um investimento a longo prazo”: “Se tiverem um quarto adaptado vão estar a chamar mais pessoas para o hotel. Depois vai ser a longo prazo – uma vez acessível, é só manter. E pelo menos as pessoas têm um quarto para ir em todas as gamas de hotel”, afirma.
Garantir a acessibilidade sem abdicar do design
Do ponto de vista arquitetónico, Rui Sousa, Management Advisor na Saraiva & Associados, explica que têm em conta três pontos: a acessibilidade arquitetónica, dimensionando os espaços e definindo circulações livres de barreiras arquitetónicas; a acessibilidade dos equipamentos, relativamente à sua dimensão, e o posicionamento de instrumentos de controle, como interruptores na cabeceira da cama ou a distância do toalheiro ao duche.
Para que um quarto esteja adaptado a uma pessoa que se desloca em cadeira de rodas, de um modo geral – uma vez que as necessidades podem depender de pessoa para pessoa –, Ana Sofia Martins aponta que primeiro é necessário um quarto com medidas mais largas, com uma cama “nem muito alta, nem muito baixa”. A casa de banho deve incluir “barras na sanita, no duche, e um banco para tomar banho”, que pode ser fixo ou amovível.
O “Guia Prático de Acessibilidade no Alojamento Turístico”, elaborado pela Accessible Portugal, acrescenta mais alguns pontos, como a inclusão de um lavatório com torneira de alavanca monocomando; sanita de modelo standard, sem abertura frontal – já que essas são destinadas a equipamentos hospitalares e não são necessárias no alojamento turístico – e acesso nivelado ao duche.
De notar ainda alguns “pormenores”, como o posicionamento mais baixo de objetos como o espelho da casa de banho, o varão dos cortinados, o secador de cabelo e do chuveiro manual, bem como a inclusão de um sistema nos armários que permita rebaixar o cabide.
O Management Advisor da Saraiva & Associados frisa que, no caso dos hotéis, têm em conta não só a acessibilidade mas também “o conforto e a estética integrada no conceito” da unidade, dando o exemplo de “instalações sanitárias acessíveis com equipamentos semelhantes aos das restantes unidades de alojamento”.
No fundo, os quartos “não precisam de ser feios para serem adaptados”, tal como defendem Ana Sofia Martins e Catarina Oliveira.
Nas restantes áreas do hotel, importa adaptar as superfícies ao nível da pessoa com mobilidade reduzida, seja no balcão da receção ou na zona de refeições, passando pelo acesso à piscina.
Os vários espetros da acessibilidade e a oportunidade de negócio
A acessibilidade não diz respeito apenas a pessoas com mobilidade reduzida. Ana Garcia, diretora da Accessible Portugal, alerta que “é comum associarmos a acessibilidade a pessoas que têm cadeiras de rodas”, algo que descreve como um “erro”.
“Quando falamos de acessibilidades falamos não de rampas, mas de pessoas. O que é preciso na oferta turística, seja ela no alojamento, na restauração ou na animação turística, é que dê resposta às necessidades dos clientes”, defende a diretora.
De acordo com dados dos censos de 2022, nos quais a Accessible Portugal tem vindo a trabalhar, 39% da população portuguesa tem algum tipo de limitação. O número, adiantado por Ana Garcia, espelha um mercado “que não deveria ser esquecido do ponto de vista de negócio”, uma vez que os clientes com deficiência “pernoitam mais noites, geralmente em épocas mais baixas”, acompanhados por amigos ou familiares.
“As pessoas estão disponíveis para pagar. Querem é ter de facto boas respostas, que configurem qualidade e segurança”, afirma Ana Garcia.
E foi precisamente para dar resposta às necessidades dos clientes que Marisa Maganinho criou a agência de viagens “Euvoo”, uma agência para todos onde é contemplado o turismo acessível, disponibilizando atendimento em Língua Gestual.
O negócio surgiu após as várias viagens que Marisa fez com o marido, que é surdo profundo, e do facto de se aperceberem que “de forma geral, o turismo não estava preparado para receber pessoas surdas, com mobilidade reduzida, ou cegas”. Sentiam que a surdez “era desconhecida”, que as respostas eram “totalmente desadequadas” e, sobretudo, que tinham mercado.
No caso da surdez, Marisa explica que as barreiras são essencialmente comunicativas: “Há quem considere que a surdez é só uma perda auditiva como acontece a pessoas mais velhas, que todos os surdos sabem fazer leitura labial, ou que não sabem ler nem escrever”, explica.
No que à acessibilidade hoteleira diz respeito, Marisa aponta para a necessidade “de informação obrigatória e útil adaptada a estas pessoas”. Refere ainda que nem tudo pode ser resolvido pela escrita e que alguns detalhes devem ser verificados, como a possibilidade de o cliente querer usar o room service, a eventualidade do housekeeping bater à porta ou ainda situações de perigo, como o disparo sonoro de um alarme de incêndio.
Para estas questões, o manual da Accessible Portugal indica algumas soluções, como a possibilidade de contacto entre a receção e o hóspede por telemóvel, através de mensagens escritas curtas. Refere ainda a necessidade de instalar campainhas com sinais luminosos, bem como avisos de emergência visuais associados ao sonoro.
Já da perspetiva das necessidades da pessoa cega, Madalena Ribeiro, consultora da Accessible Portugal, aponta para a necessidade de se reforçar a sinalética em braille nos vários pisos dos hotéis, nomeadamente no número de porta dos quartos e nos botões de elevador. Refere também a falta de informação útil sobre as unidades hoteleiras em formato acessível, seja em braille, ampliado, ou digital acessível, para que o cliente possa ter acesso aos preços dos serviços do hotel ou consultar menus de refeição.
Assegurar a formação das equipas
Quando questionadas sobre as sugestões que deixariam ao gestor hoteleiro, todas as entrevistadas responderam sem hesitar: apostar na formação de equipas.
De facto, e segundo Graça Joaquim, professora e investigadora na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, “as questões da acessibilidade e da inclusão são matérias tratadas nalgumas unidades curriculares de vários cursos, mas ainda são insuficientes, tanto na área da hotelaria como noutros setores, públicos e privados”.
Segundo a mesma, a formação em atendimento hoteleiro para pessoas com deficiência deverá incluir não só “o enquadramento jurídico e os direitos humanos”, como “matérias específicas sobre os vários tipos de deficiências e as necessidades de personalização subjacentes”.
Aliás, tanto Ana Sofia Martins como Catarina Oliveira referem que quando questionam pelos serviços do hotel, ou quando os mesmos são apresentados pelos colaboradores, estes mostram desconhecimento sobre o conceito de acessibilidade. O facto de os colaboradores estarem preparados para receber pessoas com deficiência, “evita a surpresa inicial, o pânico de não saber o que fazer e a consequente insegurança que passam ao cliente”, de acordo com Madalena Ribeiro.
Existe ainda a questão de garantir a independência do hóspede. Como refere Marisa Maganinho, “é importante perceber que o cliente pode e deve ser autónomo num momento de lazer e que tem o direito de ir sozinho”. Madalena Ribeiro acrescenta que “ainda existe uma desresponsabilização na prestação do serviço, entendendo-se que o grupo que acompanha a pessoa cega, neste caso, tem a obrigação de a apoiar em todas as suas necessidades”.
Ana Garcia explica que algumas unidades “têm imensas valências” construídas de raiz ou financiadas por projetos. No entanto, “como a rotação de pessoal é grande, não conhecem a informação, e depois falta a componente do serviço”.
De acordo com a diretora da Accessible Portugal, existem Unidade de Formação de Curta Duração (UFCD) de 25 horas no catálogo nacional de qualificações, que versam esta temática. Também a Accessible Portugal presta formação presencial e online em atendimento inclusivo voltado para o turismo. No entanto, a acrescentar a estas formações, Catarina Oliveira deixa uma sugestão.
“O ideal é fazermos uma coisa grande com todas as cadeias hoteleiras, uma formação base para os funcionários durante o fim de semana em que uma pessoa com deficiência vai ao hotel e fala sobre as várias deficiências e as suas necessidades. É importante os colaboradores terem um lugar seguro para fazer as perguntas que quiserem”, termina.