“Enquanto cozinheiro tenho um papel didático e também social”
Alexandre Silva é chef-consultor no restaurante Emme, um cargo que acumula com a chefia dos seus dois restaurantes em Lisboa: o LOCO e o FOGO.
Carla Nunes
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Trabalhar junto com os produtores locais na criação de uma cozinha Atlântica lançou o mote para esta entrevista com o chef Alexandre Silva, que desde a abertura do hotel Immerso, na Ericeira, assume o cargo de chef-consultor do restaurante da unidade, o Emme – um trabalho que coordena com o chef residente deste espaço, Paulo Pedro.
Esta foi também a oportunidade para falar sobre os desafios dos chefs no futuro, a necessidade de dar a conhecer a gastronomia portuguesa ao mundo e ainda sobre a carreira do chef que detém uma estrela Michelin pelo trabalho desenvolvido no restaurante LOCO.
Texto: Carla Nunes | Fotografia: DR
Que conceito desenhou para o Emme?
Desenhei uma cozinha baseada em produtos da região. Posso dizer que 90% dos produtos que usamos são da região Oeste, tendo em conta a proximidade que temos com o Atlântico, daí eu chamar-lhe cozinha Atlântica. Infelizmente, é um nome que não se usa muito em Portugal – fala-se muito em cozinha Litoral, mas acho que o Atlântico tem um nome muito mais forte. “Litoral” pode ser muita coisa. [Aqui] trabalhamos uma cozinha jovem, leve, com bons produtos da região, que são fáceis de entender e são percetíveis – automaticamente consegue-se perceber que é um produto da região, com a envolvência do mar.
Não só aqui, como também noutros projetos, trabalha muito com o produto local, tem essa preferência…
Tenho. Enquanto cozinheiro tenho um papel didático e também social, que é colocar comida nas mesas dos nossos produtores e de quem trabalha para nós, indiretamente, e é por isso que escolho o produto local. Fala-se muito em sustentabilidade, que infelizmente é uma palavra que as pessoas não sabem muito bem o que quer dizer. Levam sempre para [a questão do] desperdício e a sustentabilidade não é só isso, é tudo: desde os recursos humanos, às pessoas que trabalham connosco indiretamente, que é o caso dos produtores, acabando na parte financeira, que tem de ser sustentável, caso contrário o restaurante deixa de fazer sentido. Felizmente já aprendi que tenho de andar à velocidade que a mãe natureza anda, tenho de criar com aquilo que me dá. Trabalho com aquilo que tenho, e isso para mim é consistência. Porque a consistência não é só fazer um prato bem todos os dias da mesma maneira: consistência é também criar todos os dias com o processo criativo que achamos que é melhor para nós. Os nossos clientes também vêm à procura disso, de criatividade, de encontrar uma cozinha limpa no sentido de ser jovem, bonita, leve e preocupada com a saúde das pessoas.
É mais difícil trabalhar segundo as regras da mãe natureza? Ou já é intuitivo?
Já é intuitivo, desde o momento em que aceitamos que deve ser mesmo assim. Não acho que seja uma coisa muito bizarra, que é difícil. No restaurante LOCO, em Lisboa, com uma estrela Michelin, já trabalhamos assim há sete anos, e no dia em que um cliente achar que tenho de ter aquele prato para o resto da minha vida é meio caminho andado para tirar esse prato do menu. Não quero ter de ficar fechado a um prato. Tanto este restaurante, o Emme, como o LOCO e o FOGO são restaurantes que procuram a novidade, no sentido de criar uma experiência que acrescenta ao cliente.
Muito se tem falado no setor sobre sustentabilidade, aproveitamentos e sazonalidade. Acredita que esta tendência não passa disso mesmo, uma moda? Ou veio para ficar?
Acho que já devia ser assim desde sempre, desde que se criou o primeiro restaurante no mundo. Eu trabalho com micro estações, porque há produtos que só aparecem durante duas semanas, mas temos a tendência de querer trabalhar com aquele produto durante o ano inteiro. Mesmo em termos financeiros, um produto na época é mais barato, melhor, conseguimos arranjar em maior quantidade, por isso para mim só faz sentido se for dessa maneira. Trabalhar fora da estação é um caminho completamente errado e que faz com que o mundo avance tão depressa que as coisas deixam de fazer sentido. Às tantas é só o negócio e os números que interessam e a qualidade fica esquecida numa parede qualquer da cozinha.
Falou do facto de trabalhar com cozinha Atlântica e não do Litoral. No seu entender, falta criar uma marca para a gastronomia portuguesa?
Falta. [No entanto], já há muito trabalho desenvolvido, há pessoas que se estão realmente a esforçar para levar isto numa direção que acho que é certa. Achamos que se fala muito [sobre a gastronomia portuguesa] mas não se fala nada. Viajo bastante e ninguém nos conhece, ninguém sabe quem somos. Não conhecem os nossos vinhos, não sabem que produtos temos, e é por isso que convido chefs mundialmente reconhecidos pelo trabalho que fazem no seu país para virem trabalhar connosco, conhecerem aquilo que temos, para depois levarem e espalharem essa mensagem. Temos um caminho enorme para fazer, principalmente dentro de nós, que [passa por] melhorarmos a nossa maneira de estar, de olharmos para isto de forma mais pragmática e não andarmos aqui a achar que somos os melhores quando não somos. Temos chavões muito importantes no nosso país que são ferramentas de marketing, ou pelo menos, deviam de ser.
Como conjuga o trabalho que desenvolve nos seus espaços em Lisboa, o LOCO e o FOGO, e a chefia do restaurante Emme, no Immerso?
Tenho a sorte de trabalhar com equipas boas nos locais. A ideia nasce da minha cabeça, mas depois é preciso passar a mensagem às equipas residentes. Tenho essa sorte, podia não ter. Podia ser um escravo do trabalho no sentido em que sofro de ansiedade a pensar que as coisas podem correr mal. Não é o caso.
No caso do Emme on Fire, que ainda não abriu, a ideia passa por trazer um pouco do FOGO para a Ericeira?
É trazer um pouco da essência do ADN português. Nós portugueses temos um grande papel respeitante à cozinha de fogo e ninguém fala disso. Nem nós portugueses falamos disso e achamos que é uma coisa banal. Quando falamos em cozinha de fogo achamos que os grelhados é que são importantes, e a cozinha de fogo não é só isso. A nossa cozinha nasce do fogo. A cozinha portuguesa de há 50 anos não é a cozinha portuguesa de agora. Até podemos achar que é igual, mas não é, porque cozinhar com uma panela de ferro ao lume é diferente de cozinhar com uma placa de indução num tacho de inox. É isso que quero recuperar, tenho esse dever, de trazer isso novamente para perto de nós, para que as pessoas possam sentir aquilo e para que os profissionais de cozinha também consigam entender que às vezes o mais fácil não é o melhor caminho.
Há sete anos consecutivos que tem renovado a estrela Michelin no LOCO. A pressão para manter a estrela ao longo dos anos vai-se tornando maior? Influencia o seu trabalho?
A estrela ajudou-me financeiramente a ter um restaurante mais estável, o que me permite ter uma criatividade maior. É muito difícil criar quando não se é financeiramente estável, por isso a estrela trouxe-se mais tranquilidade no sentido de criar aquilo que quero e da maneira que quero. Não me traz pressão. Quando abri o restaurante LOCO não foi a pensar na estrela. Fiquei muito contente quando ganhei a estrela no primeiro ano, porque foi um sinal de que o guia estava a mudar no sentido da oportunidade do fine dining poder ser diferente daquilo que era. O novo fine dining é mais informal, há mais storytelling, mais entrega da parte de quem trabalha naquela instituição e as coisas são mais tranquilas para o cliente.
Acredita que possa haver um destaque maior para Portugal com a recente criação de cerimónias diferentes para Espanha e Portugal da entrega de estrelas Michelin?
Estamos todos apreensivos. Espanha vai sempre ter um destaque maior, até porque é um país maior e já aprendeu a receita do que é o guia Michelin e do que procura. Têm algo que ainda não temos: eles defendem-se muito uns aos outros, aprendem muito uns com os outros, passam sabedoria uns aos outros e, infelizmente, alguns de nós ainda acham que não tem de ser assim.
Essa entreajuda ainda está em falta em Portugal?
Está. Nas relações entre cozinheiros e empresários de restauração ainda há um caminho longo a percorrer porque há muita inveja, há muito aquela coisa de “eu não consigo, então também quero que não consigas”. Parece que estamos todos a sofrer o mesmo e assim é que somos amigos. As coisas não devem ser assim. É preciso que as pessoas coloquem os dedos nas feridas e digam aquilo que é importante dizer, e não aquilo que é popular dizer. Defendo muito o que é nosso porque amo o meu país e faço tudo ao meu alcance para conseguir que Portugal chegue onde acho que deve chegar em termos gastronómicos e onde merece estar. Claro que é preciso um trabalho grande e não depende só de mim e 20 pessoas que conheço, depende de muito mais pessoas. Do Governo, principalmente.
De 2007 a 2012 começou a trabalhar pela primeira vez como chef-executivo no Bocca. Que importância tiveram esses quatro anos no seu percurso?
O Bocca está para a minha carreira como os Beatles estão para a música. Se os Beatles não tivessem existido, a música que ouvimos hoje não seria certamente a mesma. O Bocca aparece na minha vida como o marco mais importante na minha carreira, porque tive um patrão que acreditou naquilo que eu fazia e que me deixou fazer aquilo que eu acreditava. Foi aí que comecei a sentir que queria fazer alguma coisa em relação à gastronomia portuguesa.
Depois, em 2012, participou no concurso Top Chef, da RTP. Que importância teve a vitória neste concurso no seu percurso?
Deu-me mais credibilidade. Quando saí do Bocca tinha 32 anos. Fui para o Top Chef e as pessoas já me reconheciam, no sentido que conheciam o trabalho que fazia no Bocca, mas ter ganho aquela prova de profissionais foi quase como um carimbo para que as pessoas que se tornaram os clientes dos meus restaurantes percebessem que “o restaurante daquele miúdo é para visitar, vamos experimentar”. Na primeira abordagem, depois, não podemos falhar quando eles vêm aos restaurantes.
Na sua opinião, estes formatos televisivos contribuíram para a popularidade da profissão de chef? Ou esta está a tornar-se menos apelativa?
Acho que foi demasiado, no sentido de não existir um filtro. A televisão, nos concursos de cozinha, principalmente, veio fazer com que muita gente quisesse trocar a carreira que tinha, de sucesso, para ir estudar cozinha. Só que depois muitos percebem que não é aquilo que querem, porque uma coisa é a televisão, outra coisa é a vida real. Uma coisa é a ideia que temos de que os chefs de cozinha são rockstars, ganham muito bem e têm a vida de sonho, e isto depois não é assim. É uma vida difícil, as pessoas não ganham bem, os que ganham bem têm de trabalhar muito para conseguir ter essas regalias. É preciso sofrer bastante. Cheguei a trabalhar cinco meses sem folgar, 18 horas por dia. Cheguei a não ter férias durante quatro anos. Há aqui um percurso no qual não tenho orgulho, no sentido de não querer fazer isso a pessoas que trabalham comigo, porque não é justo, não faz sentido. Só que lá está, é um mundo onde há tanta concorrência, onde há tantas pessoas a querer um lugar a trabalhar num restaurante com aquela pessoa que depois, quer queiramos, quer não, acabamos por querer aquelas pessoas que são mais resilientes, mais dinâmicos, mais perspicazes, com uma energia diferente e que realmente trazem uma mais-valia a uma equipa.
Foi responsável pela abertura do Alentejo Marmóris Hotel & Spa como chef-executivo de 2012 a 2014. Foi aqui que consolidou o seu trabalho com o produto local, junto dos produtores?
Já vinha de trás, mas foi aí que coloquei um carimbo nisso, ou seja, tenho esta oportunidade agora de raiz. O conceito e os valores da cozinha estão definidos e nada vai abalar isso, custe o que custar.
Quais antecipa serem as principais preocupações dos chefs no futuro?
Recursos humanos e falta de ferramentas de liderança. A maior parte dos chefs de cozinha têm muita falta de ferramentas de liderança, de coisas que os ajudem realmente a liderar uma equipa, e para isso acontecer é preciso um trabalho grande, é preciso ajuda profissional. Olhando para trás vejo que a maior parte das pessoas com quem trabalhei passaram-me valores errados daquilo que deveria ser uma equipa, valores esses que não quero hoje dentro das minhas equipas. Neste momento, o meu papel principal é dizer aos chefs residentes dos espaços que devem ser pessoas diferentes, pessoas boas e que devem juntar bons seres humanos, com bons valores. A mim interessa-me mais um bom ser humano do que uma pessoa tecnicamente muito boa. Olho para as coisas de uma maneira diferente do que olhava há 15 anos.
Quando se fala que um dos desafios vai passar pelos recursos humanos – há quem diga que até já está a ser um desafio – o que é que tem de mudar?
Andámos durante 40 anos a fazer mal às equipas, não podemos achar agora que as coisas iam estar bem só porque de repente mudámos o chip. Quem acha isso está completamente errado e se calhar devia ter feito esse trabalho há 15, dez ou mesmo cinco anos, não é agora que não têm equipas porque pagam mal, porque não dão condições de trabalho, porque o que estão a fazer não traz nada de enriquecedor em termos técnicos. Claro que no final do dia um restaurante é um negócio e não vamos achar que podemos pagar o ordenado do chef a todos os colaboradores da cozinha, da sala ou do bar. As coisas não são assim, mas é preciso fazer alguma coisa. Vou dar um exemplo: comecei a fazer semanas de quatro dias de trabalho no FOGO e hoje não vejo aquele restaurante a trabalhar de forma diferente.
E tem resultado?
Tem. Claro que tem. Tenho uma equipa mais estável neste momento, consigo ter uma equipa mais feliz porque conseguem gerir a vida de maneira diferente – conseguem viajar, estar com a família, programar a vida com antecedência, e são três dias. Eu trabalhei metade da minha vida com um dia de folga por semana, às vezes sem isso.
Neste contexto de escassez de recursos humanos, como vê o surgimento de vários espaços de restauração em Portugal, principalmente em Lisboa?
Nota-se depois no serviço. Nada acontece por acaso e as coisas não se vão tornar em termos profissionais bem executadas só porque achamos que tem de ser assim. Acho que muitos de nós já chegámos à conclusão que temos de formar pessoas. Não podemos estar à espera que as pessoas venham formadas. Isso para mim já não é um problema. Neste momento prefiro uma boa pessoa que eu consiga formar, do que uma pessoa que vem formada cheia de vícios e que vai começar a ser um cancro na minha equipa.
Que conselhos deixa às gerações mais jovens que ambicionam chegar ao cargo de chef?
Que sejam resilientes. A vida não acontece num dia só. Independentemente de querermos que a vida passe mais depressa, porque fomos habituados a viver cada vez mais depressa, a vida tem um ritmo. E numa profissão é exatamente assim. Só depois de conseguirmos tecnicamente, e em termos humanos e relações interpessoais, atingir aquele nível, é que podemos passar para o próximo. Tentem trabalhar com as melhores pessoas que conhecem, os melhores espaços que conhecem – se bem que não é o nome dos espaços que ensina, são as pessoas que trabalham nesses espaços – e sejam muito íntegros, porque sem integridade não há nada. Podem roubar-nos tudo, menos os valores.
Que planos tem para o futuro?
Consolidar. Para mim é muito importante consolidar o que tenho para conseguir ter crescimento. O Emme, o LOCO e o FOGO são espaços que têm um potencial de crescimento enorme, mas para crescer é preciso consolidar primeiro, é preciso percebermos onde estamos a errar, riscar isso da nossa vida para depois conseguirmos andar para a frente, e é isso que quero fazer neste momento.